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Um banquete para o
espírito
'Fogo
pálido' reafirma o engenho criativo de Vladimir Nabokov
Duílio
Gomes
[15/JAN/2005]
Fogo
Pálido
Vladimir
Nabokov
Companhia das Letras
304 páginas
R$ 42,50
A
obra ficcional do russo Vladimir Nabokov (São Petersburgo, 1899 - Montreux,
1977) é hoje uma das mais celebradas do planeta. Mas antes de o autor chegar a
esse pódio literário, ele amargou a derrocada financeira de sua família (os
aristocráticos Nabokov perderam toda a sua fortuna na Revolução de 1917, na
Rússia) e o anonimato de professor universitário exilado nos EUA durante a
década de 40. A sua prosa sofisticada já chamava a atenção do circuito
universitário, mas a fama de seus contos, já entranhadamente cerebrais, não
passava dessa fronteira. Com o explosivo sucesso do seu romance Lolita,
porém, sua obra e seu nome foram catapultados para o mundo.
Lolita surgiu
primeiro na França (1955) e provocou escândalo pelo seu tema - um professor
quarentão apaixonado pela sua enteada de apenas 12 anos de idade. E lançou um
neologismo, ninfeta. Pedofilia era um tema muito pouco explorado na época, puro
tabu. A partir daí, Nabokov não parou mais. Ele tinha a seu favor uma profunda
erudição e a pegada de um virtuose, além de ser um poliglota. Vivendo na América
com a sua mulher Vera e o seu filho Dmitri - criado por ele para ser um
intelectual, o que acabou se tornando - Nabokov, novamente rico com os direitos
autorais de Lolita, pôde escrever com tranqüilidade. Rejeitou as
sugestões de editores inescrupulosos que, em nome da massificação de sua obra e
de um faturamento mais ligeiro, sugeriam que ele fosse menos erudito e mais
picante.
No
Brasil, toda a sua obra vem sendo publicada desde os anos 60, primeiro pela
Civilização Brasileira e Francisco Alves e agora pela Companhia das Letras. O
leitor pôde, assim, degustar Lolita, A verdadeira vida de Sebastião
Knight, Mackenka, Somos todos arlequins, Gargalhada no
escuro, Pnin, Perfeição, Detalhes de um pôr-do-sol e a
autobiografia Fala, memória (que, pela Companhia das Letras, ganhou outro
título, A pessoa em questão), obras-primas de um prosador virtuose que
teve a sorte de ganhar, aqui, tradutores de peso como Jorio Dauster, Sérgio
Flaksman, Brenno Silveira e Sérgio Duarte.
Agora, a Companhia
das Letras lança o livro mais complexo do autor, Fogo pálido, que ganhou
uma primeira edição no Brasil em 1985, pela Ed. Guanabara. Classificado como
romance, o livro, escrito originalmente em inglês, Pale fire, foge, no
entanto, aos padrões clássicos do gênero e foi lançado em 1962 nos EUA, logo
após Lolita.
A
primeira parte de Fogo pálido é um longo poema de 999 linhas, dividido em
quatro cantos e ''assinado'' por John Francis Shade, no estilo de Robert Frost.
A segunda, um igualmente longo comentário do professor universitário Charles
Kinbote (um alter-ego de Nabokov em sua pesada erudição e propostas de charadas
intrigantes) mistura ficção, poesia, crítica literária e ensaio. Quando Shade
morre, o professor Kinbote se apropria do poema e delira sobre ele e um país
lendário, Zembla. Uma paródia com jogo de espelhos, pistas e fundos falsos,
Fogo pálido exige atenção e rapidez de raciocínio do leitor, logo
compensado pela magistral arquitetura do livro.
Não satisfeito com a
sua complexa fatura, Nabokov adicionou a ele um índice remissivo e um prefácio.
Neste, ele discorre sobre o poema e o seu ''autor'', que ele vê como homem
metódico capaz de passar a limpo, sempre à meia-noite, sua porção de versos
terminados no dia anterior, arquivando-os em fichas. Mistura, ao perfil do
poeta, metáforas delicadas: quando Shade queima algumas fichas no incinerador do
jardim, os grossos rolos de fuligem liberados por ele são ''borboletas negras
que o vento tangia naquele auto-de-fé de quintal.''
Na
segunda parte do livro, quando Nabokov (Kinbote) comenta o verso 803, ele chama
a atenção dos tradutores para possíveis distrações léxicas. E narra um caso
verídico. Uma reportagem publicada em um jornal soviético sobre a coroação de um
czar trouxe a palavra russa korona (coroa) erroneamente impressa como vorona
(corvo). O jornal desculpou-se no dia seguinte e prometeu fazer a correção da
palavra; acabou incorrendo em outro erro tipográfico, desta vez com o
substantivo korova (vaca). Nabokov brinca com a correlação artística entre as
palavras russas korona/vorona/korova e as inglesas crown/crow/cow.
Sobre esse apelo do
autor e a dificuldade em traduzir Fogo pálido, Jorio Dauster e Sérgio
Duarte assinam um posfácio no qual explicam que, em respeito ao engenho e arte
de Nabokov (técnica e rimas do poema, trocadilhos em diversas línguas,
referências cruzadas e alusões literárias), eles tiveram de buscar soluções
vernaculares.
Certamente valeu o
(ciclópico) esforço da dupla de tradutores. Fogo pálido é um banquete
para o espírito.