Polêmico manuscrito inédito de Nabokov chega às livrarias
Felipe Pontes, Rio de Janeiro (RJ) · 24/11/2009 ·
Getty Images
Vladimir Nabokov, falecido em 1977, escrevia sempre a lápis
Imagens

Uma das fichas cartonadas de O Original de Laura


A capa da edição brasileira

Chega às livrarias brasileiras esta semana O original de Laura, primeiro livro de Vladimir Nabokov publicado pela Alfaguara no Brasil. Com isso, a editora pega carona na polêmica criada em torno da publicação do rascunho de obra que Nabokov desejava queimar.

Antes de morrer, Nabokov pediu a sua mulher, Vera, e a seu filho único, Dmitri, que incinerassem as 138 fichas-cartão com o esboço de O original de Laura (Alfaguara), livro que não tivera tempo de concluir e levava para o além pronto na cabeça. Vera decidiu desobedecer o marido e manteve as fichas no cofre de um banco na Suíça. Talvez pelos mesmos motivos que, segundo a lenda, impediu o marido de queimar Lolita (Companhia das Letras).

Após a morte da mãe, em 1991, Dmitri passou a conviver com o dilema de destruir ou não tais fichas. Ele próprio tradutor de contos, cartas e romances do pai, já havia chegado a publicar outros textos inéditos, entre eles "O encantador" - conto escrito em russo, publicado em 1986, e detestado por Nabokov, que pensava tê-lo destruído. Em certo momento, chegou a ser aconselhado por Brian Boyd, principal biógrafo de Nabokov, a destruir as fichas de uma vez por todas. Aguardou o ano de 2008 para sair de cima do muro e vendeu a editoras de uma dezena de países os direitos sobre o original de O original de Laura (Alfaguara). Desde então, ler ou não o livro ganhou contornos de dilema ético.

Perfeccionista, o próprio Nabokov sempre foi claro quanto às suas convicções a respeito de obras incompletas: “Um artista deve destruir sem dó seus manuscritos após a publicação, para evitar que eles induzam mediocridades acadêmicas a pensar erroneamente que é possível destrinchar os mistérios do gênio por meio do estudo de versões abortadas. Na arte, a intenção e os planos não são nada; só o resultado conta”, escreveu o autor na tradução que fez da ópera russa Eugene Onegin. [via Sérgio Rodrigues]

Apesar das condenações ferrenhas por parte de alguns críticos mais puristas, o editor da Peguin Classic, Alexis Kirschbaum, responsável pelo tratamento editorial dado às fichas, declarou em artigo ao jornal inglês The Guardian pensar que a atitude de Dmitri Nabokov é um reconhecimento do desejo do público em conhecer Vladimir Nabokov por inteiro e de que o presente deixado por um artista mediante sua arte pertence nem ao próprio artista, nem à família, mas a todos. Argumentos pouco convincentes para a revista New Yorker, que recusou-se a publicar excertos de O original de Laura (Alfaguara). Coube à Playboy americana, revista para a qual Nabokov foi colaborador, publicá-los a partir de dezembro.

No repertório de anedotas literárias mais a mão há uma série de precedentes sobre o episódio, para o bem e para o mal. A favor, talvez o mais célebre seja o da epopéia Eneida, de Virgílio. Desejada frita pelo autor, por não ter conseguido terminá-la satisfatoriamente até a morte, foi poupada das chamas pelo Império Romano. Obedecido o pedido póstumo, não teria chegado a nós o clássico, escrito com a intenção de superar a Odisséia de Homero. Mais recente, Franz Kafka é outro caso de desejo post-mortem não correspondido. Somos todos gratos à Max Brod, amigo e editor de Kafka, por ter resistido e lançado a obra do escritor tcheco, verdadeiro abalo sísmico na literatura no início do século XX.

O relançamento de textos obscuros e inéditos de escritores consagrados e há muito mortos tem sido uma estratégia da indústria editorial americana para o desastroso ano de 2009, segundo o jornalista Sérgio Augusto, neste artigo para O Estado de S. Paulo. Os bons velhinhos trazem vantagens, como a publicidade gratuita (vide este artigo) e uma bem estabelecida rede de fãs. Dentre trabalhos obscuros de Mark Twain, Graham Greene, JRR Tolkien e Ernest Hemingway, todos lançados essa temporada, talvez O original de Laura (Alfaguara) seja o mais honesto em qualidade, pela forma que foi trabalhado o material.

Nos Estados Unidos, o livro foi lançado no último dia 17 de novembro em um volume de luxo, com fac-símiles das fichas cartonadas no topo das páginas acompanhadas das transcrições abaixo. A intenção, segundo Kirschbaun, foi deixar claro não tratar-se do último romance de Nabokov, mas de fragmentos do trabalho interrompido pela morte do autor que revelam o processo criativo de um homem muito reservado. Tanto que as fichas da edição americana de O original de Laura (Alfaguara) - com correções, marcas de dedo e manchas de comida - são destacáveis e podem ser embaralhadas ao bel-prazer do leitor.

A trama gira em torno de um corpulento médico, Philip Wild, casado com uma lasciva e pequena mulher de passado conturbado, Flora. Em certo ponto Wild recebe em mãos o original de um livro chamado Minha Laura, sobre um cabeludo caso amoroso, em que reconhece sua esposa como a protagonista. Daí em diante passa a divagar sobre uma morte em que apenas dissolve-se completamente, a começar pelos pés.

Muitos consideram a publicação de O original de Laura (Alfaguara) como uma inquietante exposição do declínio de Nabokov anterior a seu falecimento. No Brasil, o livro também traz as fotografias das fichas manuscritas ao lado das transcrições. Cabe agora aos leitores brasileiros pôr todos os fatores na balança antes de decidir se devem comprar O original de Laura ou se preferem aguardar para investir nos outros 12 títulos de Nabokov que a Alfaguara pretende relançar no Brasil, inclusive coletânea de contos inéditos e romances fora de catálogo. Até então, Nabokov era publicado aqui pela Companhia das Letras.

>Leia um conto inédito de Vladimir Nabokov publicado na revista Piauí, "Natasha", aqui.

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