Vladimir Nabokov

NABOKV-L post 0010194, Mon, 2 Aug 2004 15:53:42 -0700

Subject
Portuguese translation of Pale Fire & Rorty article
Date
Body


---------- Forwarded Message ----------
Date: Monday, August 02, 2004 4:03 PM -0300
From: Jansy Berndt de Souza Mello <jansy@aetern.us>
To: Vladimir Nabokov Forum <NABOKV-L@LISTSERV.UCSB.EDU>
Subject: Re: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequência..

?


Here is the Nabokov sighting that I had sent
you a few weeks ago. It was published in the "Folha de São Paulo" special
edition. The first text offers a translation of Rorty´s comment on Pale
Fire, since a new revised translation of this novel was announced at that
time. The second text is Michael Maar´s.



REVIVENDO OS VIVOS

Patrimônio Vladimir Nabokov/Reprodução
[Image: m0407200401.jpg] O escritor Vladimir Nabokov


FILÓSOFO NORTE-AMERICANO DISCUTE "FOGO PÁLIDO", DE VLADIMIR NABOKOV,
REEDITADO AGORA NO BRASIL

por Richard Rorty

A imaginação, dizia Wallace Stevens, é a mente reagindo à pressão da
realidade. Mas é do interesse da realidade -ou seja, da imaginação dos
mortos- que nenhuma nova reação seja necessária: que a imaginação dos vivos
não possa fazer nada senão reiterar lições previamente aprendidas e
exemplificar verdades já sabidas. Resenhadores de bom senso devem pressupor
que não se pode escrever nada de genuinamente novo, pois só assim estarão
em condição de julgar o livro que estão resenhando sem o perigo de se verem
julgados por este. À maneira do resenhador de bom senso, o leitor comum
sente-se nervoso diante de livros que não são suficientemente semelhantes
aos livros que ele leu no passado.
Vladimir Nabokov (1899-1977) escreveu livros nada parecidos aos demais e
que raramente tiveram boas resenhas. A maior parte dos críticos fez eco ao
dito de Samuel Johnson -nada de estranho pode durar- e cuidaram de
diagnosticar as esquisitices de Nabokov como índices de seu desdém egoísta
pela realidade, desdém que encobria sua incapacidade de imitar a realidade
persuasivamente. Simon Raven, resenhando "Fogo Pálido" em 1962, ano de sua
publicação, afirmou que não se tratava de "um romance, mas de um
protótipo". A resenha de Saul Maloff explicava que, "desde sempre, a razão
de ser do romancista" é "a criação de um mundo", ao passo que Nabokov
criara apenas "uma constelação de bibelôs elegantes e maravilhosos -por
definição, uma arte menor". Resenha atrás de resenha reconhecia o engenho
de Nabokov e lamentava sua auto-suficiência, seu deleite com os próprios
truques, truques que punham a nu a sua falta de respeito pela realidade e
pelo leitor comum. Dwight Macdonald declarou o livro "ilegível", sublinhou
que, mesmo em seus melhores momentos, Nabokov era "menor" e insistia que
"os esmeros técnicos que Nabokov dedica ao projeto são tão ostensivos que
acabam por destruir todo o prazer estético do leitor". Incomodado pelo fato
de Mary McCarthy ter considerado ""Fogo Pálido" uma criação de perfeita
beleza, simetria, estranheza, originalidade e verdade moral", Macdonald
explicava que tanto o romance como a resenha de McCarthy eram "exercícios
de engenho despropositado".
Nabokov não tinha nenhum interesse na criação de um mundo como aquele a que
Raven, Maloff e Macdonald estavam acostumados. Certa vez, declarou que
"dizemos que uma coisa é semelhante a tal outra coisa, quando o que
realmente adoraríamos seria descrever algo que não tem par na terra". Era
esse o anseio que tanto incomodava tantos resenhadores. Para aqueles que
gostariam que a realidade fosse tratada com o devido respeito, esse anseio
é um índice de auto-suficiência egoísta. "Egoísmo" é o nome que a realidade
dá a tudo o que chama atenção para si mesmo -tudo o que é estranho, duro de
entender, difícil de acompanhar. Quem respeita a realidade, quem tem
certeza de que não há por que submetê-la a novas pressões, dirá que tudo o
que é digno de nota já faz parte da realidade e precisa apenas ser
representado com precisão. O que não faz parte da realidade é subjetivo,
pessoal, idiossincrático, tolo, pueril, evanescente, indigno de nota. Pois,
para olhos respeitadores, a realidade é a única autoridade legítima. O
anseio do poeta em exercer pressão sobre a realidade parece não apenas
fútil, mas ainda moralmente equívoco.
Agora, os críticos e historiadores da literatura começaram a reconhecer que
o livro, afinal de contas, há de durar. Aos poucos, o romance vai
adquirindo a aura de um clássico, obra de uma das imaginações mais
poderosas que o século 20 criou. Essa espécie de reconhecimento é um dos
expedientes de que a realidade lança mão para não ter que admitir o golpe
que levou. Como se, na calada da noite, sem ninguém por perto, a realidade
emitisse pseudópodos para incorporar o último corpo estranho. De manhã, a
realidade estará tão fresca e rija quanto antes (mesmo que um pouquinho
crescida). E algo que de fato não tinha par na terra se converte em mais um
fato terrestre e objetivo, à espera de ser observado. Às vezes, porém,
quando o corpo estranho é grande demais ou complexo demais, o processo de
assimilação não estará concluído quando a manhã chegar. Nesses casos,
podemos surpreender a realidade sugando a vida de uma metáfora ou
convertendo um paradoxo numa platitude ou dando feições de clássico a um
escândalo.
"Lolita" não se parecia a nada que Morris Bishop, bom leitor, bom homem e
melhor amigo de Nabokov em Cornell, tivesse lido; seu asco diante da
sordidez de Humbert impediu-o de ler o manuscrito até o fim. Trinta anos
mais tarde, a neta de Bishop teve de ler "Lolita" na escola secundária. À
medida que "Lolita" e "Fogo Pálido" se convertam em leitura curricular e
tema de prova, Humbert Humbert e Charles Kinbote virão a ser personagens
literários conhecidos, componentes familiares da realidade em que
crescemos. Quanto mais isso aconteça, mais provável será que ambos se
fundem à figura de seu criador, mais provável será que os leitores de
Nabokov pensem que estão lendo sobre Nabokov, quando na verdade estão lendo
sobre esses dois monstros encantadores. Quanto mais se faça essa
identificação inconsciente, menos se recordarão as pessoas de que Humbert e
Kinbote manipulam as famílias Haze e Shade e, em especial, seus membros
mais jovens, Lolita Haze e Hazel Shade.
Brian Boyd, cuja esplêndida biografia serve bem à causa de Nabokov, ao
tornar menos fácil a incorporação de seus livros, conta que, entre todos os
personagens de seus romances que Nabokov admirava como seres humanos,
Lolita só perdia para Pnin. Mas os leitores de Lolita muitas vezes têm
dificuldade para conseguir focalizá-la. Parecem não lembrar de nada além da
criatura de Humbert, sua invenção: a ninfeta, mais que a garotinha.
De modo que é difícil aceitar a idéia de que ela fosse um esplêndido ser
humano. Mesmo assim, como os leitores de "Lolita" recordarão vagamente, a
garota era valente: de algum modo, ela conseguiu se livrar de Quilty e
encontrou um bom homem, capaz de lhe dar um filho. Constituiu um lar para
ele e para a criança que devia nascer perto do Natal em Gray Star, "um
povoado no noroeste mais remoto", onde faz muito frio. Pensando bem,
Nabokov diz em alguma passagem que Gray Star é "a capital do livro". É
então que nos damos conta novamente: Humbert era o único a pensar que havia
inventado Lolita; nós não tínhamos por que achar o mesmo. Nós deveríamos
lembrar que Humbert era dado a esquecer: os soluços de Lolita durante a
noite, seu irmão morto, a criança que teria substituído o irmão. Como
esquecemos?
Esquecemos porque Nabokov cuidou que esquecêssemos temporariamente. Ele
programou tudo para que esquecêssemos primeiro e lembrássemos depois,
confusos e culpados. Seu livro segue nos manipulando mesmo depois de
fechado. A razão pela qual será relativamente difícil transformar "Lolita"
em um clássico é que nós, guardiões da legitimidade, servos da realidade,
só podemos fazer comentários abalizados sobre um romance e encontrar nele
ilustrações admiráveis de verdades gerais se o tivermos sob controle. Temos
que ganhar distância dele, a fim de observá-lo fixamente, por inteiro.
Mas Nabokov cuida que, justo quando pensávamos ter recuado alguns passos e
encontrado o lugar correto para observar o livro em perspectiva, tenhamos a
sensação fantasmagórica de que é o livro que está olhando para nós de uma
distância considerável e às risadelas. O embaraço resultante costuma se
manifestar na forma de exasperação renovada diante do egoísmo de Nabokov,
de seu gosto infantil pelos truques e pela novidade tola.
O que vale para "Lolita" vale para "Fogo Pálido". Quando se lê o livro pela
primeira vez, nós nos absorvemos numa boa história, narrada por um senhor
meio esquisito, mas encantador, e isso antes mesmo de chegar ao fim da
introdução. O que vem em seguida -os 999 versos rimados de "Fogo Pálido"-
soa como uma interrupção ligeiramente infeliz. Talvez não seja justo forçar
um amante de boas histórias a atravessar laboriosamente um poema longo
antes de retornar à trama. Mas vamos lá, dizemos ponderadamente, o poema
não é tão longo assim. Depois de nos perturbarmos um pouco com a história
do suicídio de Hazel Shade no segundo canto e de nos entediarmos um
pouquinho com as reflexões sobre a morte no terceiro canto e sobre o
processo criativo no quarto canto, tornamos à história que o poema
interrompeu. Voltamos à companhia de Kinbote, intrigante, mas dúbia também,
e começamos a nos divertir com seu jeito de se intrometer alegremente no
que, em teoria, é um comentário ao poema que já começamos a esquecer.
Cinqüenta páginas depois, esquecemos tudo a respeito de John Francis Shade
(1898-1959, a introdução já dizia, vale lembrar, que ele morrera logo
depois de escrever "Fogo Pálido", pobre homem!). Pois agora estamos imersos
nas aventuras de uma figura bem mais interessante: Charles Xavier Vseslav,
último rei de Zembla (reinante entre 1936-1958). Se o único grande
acontecimento na vida de Shade parece ter sido o infeliz suicídio de sua
jovem filha, a história da juventude de Xavier é repleta de incidentes.
Mais ainda, ela possui aquele profundo interesse humano que sempre se
prende às histórias da realeza, para não falar daquele fremitozinho extra
que sentimos ao ler sobre a cópula de jovens faunos.
Cem páginas mais tarde, estamos convencidos de que Charles Kinbote e
Charles Xavier são a mesma pessoa. Isso nos proporciona não somente a
satisfação de saber que nosso interesse por Kinbote foi recompensado, mas
ainda a sensação basbaque de que a realeza achou por bem nos tratar como
confidentes. Um ex-rei, triste, mas bonito e bem lido, confia em nós a
ponto de nos contar coisas que pouquíssimas pessoas poderiam adivinhar.
Shade aparece de vez em quando, e suspeitamos de que ele também pode ter
sido clarividente o bastante para perceber, como nós, quem Kinbote de fato
é. Mas as aparições de Shade são sempre sucedidas e obliteradas pela
revelação de algum fato novo e surpreendente sobre nosso notável anfitrião
e comentador. É tão-somente nas páginas finais do romance que somos
novamente forçados a pensar seriamente em Shade. Pois agora algo de fato
acontece: ele é morto. Shade retorna à história de Kinbote no mesmo momento
em que Gradus, o regicida enviado pelo governo revolucionário de Zembla,
está a ponto de cumprir sua missão.
Tão logo Shade morre, o romance começa a cair em pedaços. Nossa atenção é
subitamente puxada de volta ao poema que esquecemos por tanto tempo. Pois
Gradus surge no momento em que Shade finalmente entrega a Kinbote o
manuscrito de "Fogo Pálido". Enquanto Shade, caído no chão, se esvai em
sangue, Kinbote corre para dentro da casa, a fim de buscar um copo d'água
para o amigo moribundo e esconder o manuscrito sob uma pilha de galochas de
ninfetas dentro de um armário. Após alguma demora desagradável (Kinbote tem
que gastar algum tempo com a viúva de Shade, a polícia e coisas do gênero),
ele pode enfim recuperar o manuscrito. Ele o lê rosnando, "como um jovem e
furioso herdeiro que percorre o testamento deixado por um velho impostor",
dando-se conta de que o poema não trata dele mesmo, mas de seu autor.
Nós, leitores, a essa altura completamente emaranhados às esperanças e aos
temores de Kinbote, nos surpreendemos a compartilhar a decepção
avassaladora de Kinbote, muito embora nós mesmos já tenhamos lido o poema e
saibamos muito bem que tratava dos Shades, e não da derrocada da monarquia
em Zembla. Nós também nos perguntamos como Shade pôde ser tão insensível e
cruel a ponto de não fazer nenhum uso do material maravilhoso que seu amigo
Kinbote lhe oferecia constantemente. Entretanto as dúvidas que nós,
monarquistas leais, temos deixado impacientemente de lado ao longo de 200
páginas começam a refluir. Talvez (aliás, muito provavelmente) não sejamos
os confidentes de um rei, mas as vítimas de um lunático.
Zembla, recordamos, não figura em nenhum mapa que se conheça. Os castelos
ao pôr-do-sol começam a ruir diante de nossos olhos. Toda a história
mirabolante talvez não tenha sido mais que a invenção de um acadêmico
exilado e enlouquecido, um monstro de egoísmo que nos arrebatou com suas
fantasias absurdas. A única pessoa sadia, mais ainda, a única pessoa
decente à vista (seja no romance, seja na sala onde o lemos) vem a ser o
sujeito que esquecemos há tempos, o homem que escreveu o poema cujo
acontecimento central nós preferimos não lembrar: o doce e trapalhão John
Shade, com seus valores familiares fora de moda.
Enquanto vemos ruir os castelos, lembramos que torres envoltas em nuvens
são sujeitas a dissolução. E, enquanto procuramos desesperadamente por
Nabokov, para lhe pedir que nos leve a seu próprio ponto de vista, que nos
mostre de onde observar o romance com clareza, nós nos damos conta de que
estamos precisamente onde ele queria que estivéssemos: ouvindo Kinbote
dizer: "Muito bem, minha gente, acho que muitos dos presentes neste belo
salão têm tanta fome e tanta sede quanto eu, e acho melhor, meus amigos,
parar por aqui". É como se Próspero, após explicar que em breve mandará seu
livro para o fundo do mar, viesse até a beira do palco para anunciar que
haverá frutas e bebidas à venda no pátio logo depois do espetáculo, que os
assinantes serão bem-vindos nos camarins, mas que, infelizmente, o autor da
peça, que adoraria estar ali para encontrar seus muitos amigos, está fora
da cidade.
Assim como é preciso muito esforço para lembrar que Lolita soluçava no meio
da noite, é também preciso muito esforço para lembrar de Hazel Shade, a
moça acima do peso cujo corpo foi retirado do lago Omega no segundo canto.
Mas o lago é o traço topográfico central de "Fogo Pálido". A busca de um
ponto de vista acabará por conduzir o leitor às margens pantanosas do lago
e ao centro exato do poema: "Da margem destacou-se um indistinto/ Vulto que
o pântano, voraz, sorveu".


__________________________________________________
Os "truques" de Nabokov eram os transbordamentos ebulientes de uma mente
bem mais ágil do que a nossa; ele queria aprimorar a si e a seus leitores
__________________________________________________


Aos poucos percebemos que a morte mais importante em "Fogo Pálido" é a
mesma que importa no poema "Fogo Pálido": não a de Shade, mas a de sua
filha. Shade tinha 61 anos quando foi morto por acidente (por um regicida
incompetente, se dermos crédito a Kinbote, ou, mais provavelmente, por um
lunático à solta, Jack Grey, que confundiu Shade com o juiz que o recolheu
a um asilo). Mas sua filha Hazel tinha apenas 23 anos quando sua
infelicidade tornou-se insuportável, graças à crueldade de um estudante
universitário, Pete Dean, desapontado com a sensaboria de um encontro às
cegas. Ficamos sabendo muita coisa sobre o autocastrado Gradus, mas
pouquíssimo sobre Pete. É provável que não fosse nenhum monstro, quem sabe
até um rapaz decente, um tanto egoísta e afoito -alguém muito parecido
conosco. Nós mesmos talvez tenhamos sido um pouco egoístas e afoitos ao
esquecer a família Shade tão rapidamente, mas não foi correto da parte de
Nabokov embrulhar-nos tanto tempo com aqueles moços floridos, aqueles
paladinos da Rosa Negra, toda aquela conversa fabulosa sobre Zembla.

Crueldades
Seja como for, os Shade não são muito mais reais que Zembla. Afinal de
contas, Hazel é um personagem de ficção. Por que a crueldade de Pete Dean
deveria ser mais dolorida do que a crueldade de Charles, o Bem-Amado, para
com a pálida rainha Disa? Pois, assim como Disa e, de resto, o próprio
Charles Xavier, não eram mais que criações ficcionais do ensandecido
professor Kinbote, do mesmo modo Hazel não é mais que a criação de um
professor exilado de literatura russa e inglesa, sujeito esquisito, dado a
truques e fantasias, de nome Nabokov, um professor cuja semelhança com
Kinbote é patente no final do livro. Saímos ofuscados dali, fugindo ao som
do pano de fundo sendo rasgado às nossas costas, tentando nos livrar da
coisa toda como de um amontoado de truques impingidos a nós por um
egomaníaco exilado. Foi o que a maioria dos resenhadores de "Fogo Pálido"
tentou fazer. Mas tal estratégia não funciona. Pois agora o mundo real
recebeu um pequeno golpe, bem ali onde nos esquecemos de Hazel. Mas esse
esquecimento não foi uma fantasia. Foi tão real quanto nós. O golpe foi
desferido pela imaginação de Nabokov, mas só foi possível com nossa
participação entusiástica. Quando lemos pela primeira vez "Lolita" ou "Fogo
Pálido" ou "Pnin", podemos rir do começo ao fim de cada uma dessas
histórias prodigiosas. Mas saímos das páginas finais de cada um desses
romances coçando a cabeça, perguntando-nos se estamos bem, se gostamos de
nós mesmos. Nesses três romances, Nabokov dispõe as coisas de tal modo que
façamos uma aliança com um determinado personagem (Humbert, Kinbote ou
qualquer um dos colegas desdenhosos de Pnin) contra alguém que esse mesmo
personagem trata cruelmente. Ele também cuida que pensemos estar ombro a
ombro com o próprio Nabokov, com esse escritor tão brilhante, que nos está
proporcionando tão bons momentos, cujo engenho nos é fonte de tanto deleite
estético. Mas, em todos esses casos, percebemos no final do livro que seria
melhor não nutrir sentimentos tão calorosos por esse personagem com quem
estivemos perambulando e cuja companhia parecia tão agradável. E isso nos
faz pensar se nossa relação com Nabokov é tão transparente quanto
pensávamos. Começamos a ter a terrível sensação de que talvez Nabokov não
goste tanto assim de nós assim como não gostava dos personagens a quem nos
apresentou. Mas valeria ter-nos identificado a outra gente -Shade, Lolita,
Pnin- antes que fosse tarde demais.

Palhaço anônimo
Nosso arrependimento só faz crescer quando ouvimos Nabokov dizer a um
entrevistador: "Faz pouco tempo, um palhaço anônimo, escrevendo sobre "Fogo
Pálido" numa revista de Nova York, tomou por minhas as declarações do
comentador que inventei no livro...". Talvez não nos tenhamos saído melhor
que esse palhaço anônimo? Será isso o que Nabokov queria que sentíssemos?
Sendo assim, ele é de fato tão insidiosamente cruel, tão egoísta e
indiferente quanto seus personagens mais sedutores, não? Não. Nabokov é um
autor tão gentil e generoso quanto foi na vida real. Muito embora não tenha
a menor vontade de se reunir a nós para comes e bebes depois de tirar sua
maquiagem de Próspero, ele tampouco está interessado em nos passar uma
rasteira. Ele sabe muito bem que, daqui a alguns dias, estaremos mais
felizes e seremos mais sábios por termos sofrido um pequeno golpe.
Massageando esse golpe com mais tranqüilidade, perceberemos que, como ele e
como todos mais, nós também temos nosso lado Shade e nosso lado Kinbote. O
lado que sente compaixão por Hazel e Lolita e o lado que as esquece, o lado
que sente pena das dificuldades de Pnin com a língua inglesa e o lado que
as acha divertidas às pampas. Quem tiver esses dois lados em si mesmo pode
muito bem se tornar mais gentil e generoso ao reconhecer sua própria
duplicidade. Quanto mais vezes lemos "Fogo Pálido" e quanto mais vezes o
lemos no contexto dos demais livros de Nabokov, mais claramente percebemos
que cada um desses lados só emerge à luz do outro: Shade não seria
plenamente visível sem Kinbote, nem Kinbote sem Shade. No final da
entrevista citada acima, o jornalista comenta que "às vezes me parece que
nos seus romances, em "Riso no Escuro", por exemplo , há um traço de
perversidade que chega às raias da crueldade". Ele respondeu: "Não sei.
Talvez. É claro que alguns de meus personagens são bem bestiais, mas não me
importo muito, estão fora de meu íntimo, feito monstros arrependidos na
fachada de uma catedral -demônios colocados ali apenas para mostrar que
tomaram uma sova. Na verdade, eu sou um senhor afável que abomina a
crueldade".

Beleza e compaixão
Nabokov tornou-se mais afável à medida que envelhecia, escrevia mais
romances e dava sovas em mais e mais demônios. Escreveu "Fogo Pálido"
quando tinha a idade de Shade, 61, e conferiu a Shade uma espécie de
generosidade que não soubera dar, 25 anos antes, a Fiódor
Godunov-Tcherdintsev (em "O Dom"). Quando Kinbote pede uma senha a Shade,
este lhe diz "compaixão". Nesse caso, podemos ter certeza de que Shade fala
por seu criador, que, nas suas "Conferências de Literatura", escrevera:
"Beleza e compaixão é o mais perto que chegaremos de uma definição da
arte". É tentador afirmar que Kinbote dava-se bem com a beleza, e Shade,
com a compaixão, e ainda que vincular a obra dos dois homens produziu o que
McCarthy declarou ser "uma das grandes obras de arte do século 20". Mas
isso seria simplista demais. Shade saía-se muito bem com a beleza: há
versos maravilhosos espalhados em "Fogo Pálido". Kinbote comiserava-se
ferozmente por Disa, ainda que apenas em seus sonhos, e estava certo ao
dizer que "Hazel Shade parecia-se comigo sob certos aspectos" (e não apenas
pela tendência suicida).
As relações entre Kinbote e Shade e entre suas contrapartidas dentro de nós
não são de mera oposição. São dialéticas, tão dialéticas quanto as relações
entre as nossas primeira, segunda e terceira leituras de "Fogo Pálido".
Nabokov não estava interessado em imitar a realidade; queria transformá-la,
transformando a si mesmo e a seus leitores em pessoas capazes de sentir e
fazer coisas que não saberiam sentir e fazer antes. Também não estava
interessado em nos trapacear. Os seus "truques" eram os transbordamentos
ebulientes de uma mente bem mais ágil e bem mais armada do que a nossa.
Nabokov não tinha interesse ou necessidade de admiração. Queria aprimorar a
si e a seus leitores, aumentando a intensidade das trocas dialéticas entre
os dois lados da sua e da nossa natureza: o lado que se exalta diante da
beleza e das fantasias que a beleza gera e o lado que se dilacera diante do
sofrimento dos indefesos.
Aqueles que julgam a fantasia irrelevante para o senso moral não poderão
aceitar a definição nabokoviana de arte. Talvez cheguem a duvidar de que
Nabokov acreditasse em sua própria definição, pois dificilmente conseguirão
vê-lo como mais do que um egoísta enamorado de seu próprio brilho
estilístico. Pensarão ainda que, a fim de inspirar compaixão, não
precisamos nem queremos estilo, engenho e perfeição formal: o estético só
pode nos distanciar do moral. Dirão ainda que precisamos ser tão realistas
quanto for possível; não queremos fazer pressão contra a realidade, mas sim
respeitá-la, na forma que a moralidade prescreve que respeitemos os
sentimentos alheios -devemos observar as pessoas tais como elas são, e não
imaginá-las.
Mas Nabokov recorda-nos de que só podemos respeitar o que somos capazes de
notar, e muitas vezes é difícil notar o sofrimento alheio. E ele ainda
aponta a razão dessa dificuldade: passamos boa parte do tempo inventando
pessoas, em vez de notá-las, metamorfoseando pessoas reais em personagens
de histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, sobre nossa beleza
e singularidade. Quanto mais dotes poéticos tivermos, melhores fabuladores
seremos e menor será nossa capacidade de notar o sofrimento dos outros.
No caso extremo de pessoas fabulosamente dotadas e capazes de jamais deixar
que o sofrimento alheio se intrometa nas histórias que contam, tais
histórias podem se tornar verdadeiramente prodigiosas. Serão histórias à
feição da que Kinbote conta sobre Charles Xavier ou da que Humbert conta
sobre aqueles raros espíritos capazes de detectar uma ninfeta -"demônio
imortal em forma de criança"- à primeira vista; histórias que tornam
impossível ao leitor enredado recordar que John Shade tem outros assuntos
para seus poemas além de Zembla ou que Lolita é uma criança.
Nabokov era o espírito mais singular que se possa imaginar: um poeta de
dons fabulosos, cuja capacidade de notar o sofrimento alheio crescia à
medida que fazia uso de seus dons. Ele percebeu que a melhor forma de fazer
seus leitores notarem o sofrimento alheio consistia em exibi-lo por um
momento, depois forçá-los a esquecer tudo por um bom tempo, para enfim
trazê-lo novamente à tona justo quando o leitor estava perfeitamente
enredado pela pura beleza da fantasia, pela pura alegria da prosa. Nabokov
sabia muito bem que a arte pode ser uma distração dos imperativos da
moralidade, mas também sabia que ela pode ser, ao menos para alguns de nós,
o melhor meio de aprimoramento moral.
Pois, mesmo que a beleza possa afastar a compaixão, ela também pode
suscitar uma compaixão de intensidade previamente inimaginável: quanto mais
bela a história que nos fez esquecer, maior será a compaixão que por fim
recordamos. A imagem de um garoto que tenta salvar o irmão das pedras que
os demais colegas de escola lhe atiram será sempre uma imagem familiar em
muitos países, mas menos freqüente naqueles onde se lêem romances.

__________________________________________________
Richard Rorty é filósofo e professor na Universidade Stanford (EUA). É
autor de "Para Realizar a América" (DP&A) e "Ensaios sobre Heidegger e
Outros" (Relume-Dumará). Uma versão ampliada deste artigo foi publicada
como introdução à edição da Everyman's Library (EUA) de "Fogo Pálido" .
Tradução de Samuel Titan Jr.

__________________________________________________
Fogo Pálido
304 págs., R$ 42,50 de Vladimir Nabokov. Trad. Jorio Dauster e S. Duarte.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, São
Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A NINFETA FEIA

ENSAÍSTA DISCUTE SE VLADIMIR NABOKOV TERIA SE APROPRIADO DE CONTO DE UM
AUTOR QUASE DESCONHECIDO PARA COMPOR "LOLITA", UM DOS PRINCIPAIS ROMANCES
DO SÉCULO 20

por Michael Maar

Você já não ouviu isso antes? O narrador na primeira pessoa, um homem culto
de meia-idade, relembra a história de um "amour fou" passado. Tudo começa
quando, durante viagem ao exterior, ele aluga um quarto em uma casa de
família. No instante em que vê a filha da família, se apaixona
perdidamente. Ela é uma pré-adolescente cujos encantos o escravizam
imediatamente. Ignorando sua idade terna, ele se torna íntimo dela. No
final ela morre, e o narrador, marcado para sempre pela garota, permanece
só. O nome da menina dá título à história: "Lolita".
Conhecemos a menina e sua história, conhecemos o título. Pensamos também
conhecer o autor, mas nos enganamos. Seu nome era Heinz von Lichberg.
"Lolita", de Von Lichberg, é um conto de 18 páginas publicado em 1916, 40
anos antes de seu homônimo famoso. A história é obra de um autor alemão de
25 anos que praticamente não deixou rastro nos arquivos literários. Mesmo
em termos bibliográficos, ela é bem camuflada: "Lolita" está escondida
dentro de um volume intitulado "The Accursed Gioconda" [A Gioconda
Maldita]. É o nono da coletânea de 15 contos. Ainda em 1975 o livro podia
ser comprado em um sebo de Berlim. É provável que, nos anos 1920 e 1930,
fosse facilmente encontrável. Hoje, porém, só é possível vê-lo em algumas
poucas bibliotecas universitárias.
Quem foi o criador da primeira "Lolita"? O autor não é encontrado em
nenhuma enciclopédia de literatura. A única obra de referência biográfica
que o menciona nem sequer acerta as datas de sua vida. É perdoável, já que
Lichberg era um pseudônimo literário. O verdadeiro nome do autor era Heinz
von Eschwege. Descendente de uma família antiga de Hesse, Von Eschwege
nasceu em 7 de setembro de 1890 em Marburgo, filho de um tenente-coronel da
infantaria. Aos 7 anos ele perdeu sua mãe. Durante a Primeira Guerra
Mundial, foi tenente da Artilharia Naval.
Nesse período, além de "A Gioconda Maldita" e de uma antologia de poesia
alemã, ele publicou contribuições nos periódicos "Jugend" e
"Simplicissimus". Depois da guerra -durante a qual tinha sido lançado um
volume de seus próprios poemas- ele trabalhou em Berlim, como jornalista
para os jornais do Scherl-Verlag, o núcleo do posterior império Hugenberg.
Suas cartas traziam o cabeçalho Eschwege-Lichberg, e ele ainda se assinava
Eschwege, mas publicava seus escritos sob o nome de Heinz von Lichberg.
Ao ler o conto hoje e compará-lo com o romance, somos dominados por uma
leve sensação de irrealidade e de déjà vu, como se tivéssemos entrado em
uma das histórias labirínticas de Borges. A parte principal do conto, que
possui pouco valor artístico, apresenta uma viagem à Espanha. O narrador
anônimo, que escreve na primeira pessoa, parte do sul da Alemanha, depois
de se despedir de dois irmãos idosos, proprietários de uma taverna que ele
frequenta. Ele passa por Paris, chega a Madri e, depois, Alicante. Ali ele
se hospeda em uma pensão à beira-mar. Seus planos não vão além de férias
tranqüilas. Mas então algo acontece: após um breve adiamento, um vislumbre
primeiro e fatal que não pode deixar de nos remeter à "Lolita" posterior
[Companhia das Letras]. Nesta, o narrador na primeira pessoa Humbert
Humbert faz uma viagem para encontrar um lugar calmo para trabalhar e que
tenha um lago por perto. Na cidadezinha de Ramsdale ele visita a
proprietária Charlotte Haze, que ele acha tão pouco atraente quanto sua
casa.
Decidido, em seu íntimo, a partir, ele acompanha a sra. Haze ao que ela
descreve como a "piazza" do estabelecimento, e, de repente -"sem nenhum
aviso prévio, uma onda azul ergueu bem alto meu coração"-, ele vê a criança
imortal, o renascimento de seu primeiro amor de beira-mar: "Era a mesma
criança -os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis,
nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos".
Da mesma maneira, o narrador de Lichberg só precisa de um vislumbre para se
emocionar, e, da mesma maneira, a beleza da menina dele também possui o
toque sombrio de um mistério do passado.
"A pensão administrada por Severo Acosta era uma casa pequena e torta com
balcões grandes, apertada entre outras casas semelhantes. O dono da casa,
falador e amigável, me levou até um quarto com uma belíssima vista do mar,
e não havia nada para me impedir de desfrutar uma semana de beleza sem
perturbações. Até o segundo dia, quando vi Lolita, a filha de Severo. Ela
era muito jovem para nossos padrões nortistas, com sombras sob seus olhos
sulistas e cabelo de uma tonalidade incomum de ruivo dourado. Seu corpo era
esbelto e flexível como o de um menino; sua voz, profunda e escura." Como
Humbert, nosso narrador se sente imediatamente enfeitiçado e abandona
qualquer idéia de partir. Sua Lolita, também, assim como a posterior
Dolores Haze, é sujeita a sofrer mudanças violentas de estado de ânimo.
Assim começa a descrição que Lichberg faz de uma paixão enigmática que leva
o narrador a abandonar qualquer idéia de partir. Lolita é sujeita a
caprichos e estados de humor variáveis. Será que ela quer algo dele ou não?
Será que esconde segredos em sua alma de criança? Assim como no caso do
agradavelmente surpreso Humbert Humbert, ao final é Lolita quem termina por
seduzir o narrador, e não o contrário. O autor não o afirma claramente, mas
suas elipses e seus rodeios não deixam ao leitor grande margem de dúvida. O
texto é ao mesmo tempo tão pouco explícito e tão pouco ambíguo quanto cabe
à época. Os dias e noites dedicados por um amante de meia-idade à doce boca
de uma linda ninfeta se tornaram sexualmente indecentes apenas mais tarde,
com Nabokov, que primeiro pensou em publicar seu manuscrito anonimamente e,
mais tarde, escapou da censura por pouco. Apesar disso, a correspondência
entre as tramas básicas, a perspectiva da narrativa e a escolha do nome da
protagonista não deixa de ser notável. Infelizmente, porém, como observa
Van Veen em "Ada", não existe lei lógica que possa nos dizer quando um
número dado de coincidências deixa de ser acidental. Em sua ausência, não
existe maneira de responder -e, é claro, menos ainda de deixar de lado- a
pergunta inevitável: teria Vladimir Nabokov, autor da imortal "Lolita", o
orgulhoso cisne negro da ficção moderna, tido conhecimento do patinho feio
que foi seu precursor? Poderia ele -mesmo que apenas inconscientemente, já
que presume-se que um citar consciente teria sido impensável- ter estado
sob seu estímulo? Seja como for, Nabokov poderia facilmente ter cruzado o
caminho do autor de "Lolita", o conto. Heinz von Lichberg viveu durante 15
anos na zona sudoeste de Berlim, praticamente no mesmo bairro de Nabokov.
Quando criança, Nabokov passou por Berlim várias vezes, quando sua família
estava a caminho da França. Um ano depois de a família fugir da Rússia, em
1919, seus pais e irmãos se mudaram para o distrito de Grunewald, em
Berlim, onde Vladimir os visitava em suas férias de Cambridge. Em março de
1922 seu pai foi assassinado por um monarquista russo no Teatro da
Filarmônica de Berlim. Naquele verão, Vladimir se mudou da Inglaterra para
Berlim e -algo que não poderia ter previsto- permaneceu ali até 1937.
Naqueles 15 anos em Berlim ele ficou noivo de uma alemã e se separou dela;
conheceu Vera Slonim, casou-se com ela e tornou-se pai de um filho e, além
disso, tornou-se Sirin, o escritor russo de maior destaque da geração jovem
da época. Em Berlim ele escreveu nada menos que nove romances russos, e
tinha quase concluído o décimo e melhor deles, "The Gift", quando deu
início a sua conquista da literatura americana com "The Real Life of
Sebastian Knight". Nada disso nos diz se Sirin-Nabokov pode ter lido a
"Lolita" alemã. No que diz respeito a seus conhecimentos de assuntos
alemães, Nabokov sempre se manteve reticente, quando não o negava
simplesmente. Ele deixava subentendido que, isolando-se dentro da
comunidade de exilados russos para evitar perder sua língua-mãe, ele quase
não falava o alemão e não lia livros alemães. De fato, Nabokov nunca chegou
perto de dominar o alemão como fazia com o francês. Mas não estava mentindo
quando, no pedido que fez para obter uma bolsa de estudos Guggenheim, em
1947, afirmou ter "conhecimento razoável do alemão". De qualquer maneira,
seria inimaginável que um gênio poliglota como ele pudesse viver em um país
por tanto tempo sem alcançar pelo menos um comando passivo de sua língua. E
sua antipatia posterior -e eminentemente compreensível- pelos alemães não
impediu que seu "conhecimento razoável" da língua deles se estendesse a
suas letras. Seu comentário sobre "Eugênio Oniéguin", de Puchkin, por si só
revela uma erudição especialista que nem todo germanista seria capaz de
demonstrar. Nabokov não apenas tinha familiaridade com os românticos e
clássicos alemães como sua obra é pontilhada de alusões à literatura alemã.

A célula original
Ele valorizava ao extremo Goethe e Hofmannsthal, respeitava Kafka e
desprezava Thomas Mann (cujo "A Montanha Mágica" estudou com a ajuda de um
dicionário). Ele traduziu para o russo vários poemas de Heine e a
"dedicatória" do "Fausto", de Goethe. Existem indicativos de que tenha lido
Schopenhauer no original. Materiais menos corriqueiros também entravam em
seu campo de visão: o material de base de seu romance "Despair" saiu de
jornais alemães, e em um de seus contos ele lançou uma farpa contra "Bruder
und Schwester", de Leonhard Frank, às vezes visto como a fonte de "Ada".
Alguém que tivesse conhecimento de Leonhard Frank com certeza poderia ter
topado com Heinz von Lichberg. Não como romancista, mas como jornalista do
"Berliner Tages-Anzeiger", Lichberg estava permanentemente presente durante
os 15 anos em que Nabokov viveu em Berlim. No entanto, supondo -digamos,
graças a uma dessas coincidências mais freqüentes na vida do que devem ser
em qualquer romance- que a coleção de "grotescos" do autor alemão tenha
caído nas mãos do escritor russo, teria Nabokov se interessado pelo tema de
"Lolita" já naquele momento de sua vida?
Sim, com certeza. Vinte anos antes de concluir seu próprio romance sobre o
tema, ele já incluíra um esboço dele na boca de um personagem secundário.
"Ah, se eu tivesse um ou dois instantes de tempo", suspira o senhorio do
protagonista em "The Gift", "que romance eu seria capaz de redigir!".
"Imagine algo assim: um sujeito velho -mas ainda no vigor dos anos, fogoso,
sedento de felicidade- conhece uma viúva, e ela tem uma filha, ainda uma
menininha -você sabe o que quero dizer-, em quem nada é formado ainda, mas
que possui um jeito de andar que deixa você louco, fora de si. Uma garota
miúda, esbelta, muito loira, pálida, com sombras azuis sob os olhos -e, é
claro, ela nem sequer olha para o velho safado. O que fazer? Bem, sem
perder muito tempo pensando, ele se casa com a viúva. OK. Eles vão viver
juntos, os três. Assim se pode continuar por tempo indefinido -a tentação,
o tormento eterno, a ânsia, as esperanças loucas." E assim Nabokov de fato
continuou, escrevendo, cinco anos mais tarde, em Paris, a novela "The
Enchanter", em que a célula original de "Lolita" já forma um embrião
completo.
Dez anos depois ele começou a compor o romance, que, apesar das tentações
do incinerador, concluiu vitoriosamente em Ithaca, na primavera de 1954.
É interessante, porém, que Lolita, embora surja tão precocemente como
figura e como tema, como nome surja apenas bem mais tarde. Nabokov disse ao
primeiro comentarista de "Lolita", Alfred Appel Jr., que originalmente
tencionou chamar sua heroína de Virgínia e intitular o livro "Ginny". No
manuscrito, ela teve durante muito tempo o nome Juanita Dark. Foi apenas
mais tarde que Nabokov descobriu mil razões pelas quais o nome Lolita, com
o qual o livro começa e termina, se tornara essencial. De que profundezas
de semiconsciência ou criptomnésia pôde o nome, atraído por alguma isca
nova, ter ascendido à superfície?
A figura de Lolita, em si, possui tanta semelhança com sua precursora
hispano-germânica quanto qualquer menina pode ter com outra. Elas não são
gêmeas, de maneira alguma, e a semelhança entre elas é passageira -tão
passageira quanto o perfume do pó-de-arroz espanhol que percorre o primeiro
amor de Humbert. Em ambos os casos Lolita é um diminutivo de Lola, em um
caso de origem espanhola e, no outro, mexicana. Existe também, como Appel
observou, um traço alemão na Lola de Nabokov. A "femme fatale" desse nome
que aparece no filme "O Anjo Azul" [1930], de Sternberg, era representada
por Marlene Dietrich, a quem Humbert certa vez compara a mãe de Lolita. Ao
partir, ele chega a chamá-la de Marlene e, em outra ocasião, de Lotte,
enquanto o sobrenome dela, Haze, é semelhante ao alemão Hase (coelhinha),
como Nabokov confidenciou a um entrevistador da revista "Playboy" -talvez
apenas para lisonjear a revista. O fato de Humbert certa vez chamar sua
Lolita de "die Kleine" integra o mesmo pano de fundo espantosamente
consistente. Nada disso, entretanto, aponta necessariamente para a Lolita
primeira, de Lichberg. Entre as semelhanças entre a "Kleine" de 1916 e a de
1954, que certamente existem, uma delas, de qualquer maneira, diz respeito
muito mais à "Ur-Lolita" própria de Nabokov. Lichberg dirige seu foco
narrativo desde o início para o corpo esbelto de Lolita, "como o de um
menino". Do mesmo modo, a primeira descrição que Humbert faz de Lolita,
quando ela traz de volta a imagem de sua paixão infantil à beira-mar, canta
seus "quadris pueris". Em vários momentos Nabokov, sem que isso dê na
vista, a veste em roupas de menino; em uma ocasião Humbert a chama de "mon
petit", em outro ele fala, embevecido, de seus "lindos joelhos de menino".
Humbert não está citando Heinz von Lichberg, mas um jovem chamado Erwin.
Pois a pré-história de Lolita tem origens mais distantes do que "The Gift".
A primeira aparição de uma menina ainda não formada, cujo andar é capaz de
enlouquecer um homem de idade madura, ocorre no conto "A Nursery Tale"
(1926), de Nabokov. Na companhia de um velho poeta -em que, anos depois,
Nabokov, para sua própria surpresa, identificaria um antecessor de
Humbert-, uma criança-mulher passa por Erwin, que, ele próprio, não deixa
de ter alguns pendores humbertianos, embora seja apreciador especial de
"garçons manqués". "The Nursery Tale" não é o tipo de fábula que os irmãos
Grimm ou Hans Christian Andersen nos convidariam a apreciar.

Seqüência de pré-Lolitas
Sua trama, tratada com elegância, brinca com uma fantasia masculina
clássica. O diabo se oferece para realizar os tímidos sonhos eróticos de
Erwin. Ele terá um dia no qual, por meio de seu comando mental, poderá
escolher um número ilimitado de garotas para serem suas parceiras de
folguedos. A décima segunda e última de suas concubinas é uma criança de
cerca de 14 anos que aparece num vestido preto decotado: "Havia algo de
bizarro nesse rosto, bizarro era o olhar fugaz de seus olhos muito
brilhantes demais, e, se ela não fosse apenas uma menininha -a neta do
velho, sem dúvida-, poder-se-ia desconfiar que seus lábios tinham sido
retocados com ruge. Ela caminhava rebolando os quadris muito, muito
levemente; suas pernas se aproximavam mais, ela perguntava algo a seu
companheiro em voz alta -e, embora Erwin não tivesse dado nenhum comando
mental, sabia que seu rápido sonho secreto tinha sido realizado".
Aqui, sem dúvida, temos a primeira de uma seqüência de pré-Lolitas, uma
cadeia que, desse momento em diante, não mais será rompida. Ela ainda não
tem nome, mas já é uma ninfeta fatal, como Nabokov a descreveria mais tarde.
E, desde o início, com sua primeira aparição em sua obra, a figura revela
traços demoníaco-fantasmagóricos, aos quais o jovem autor ainda faz
referência, sem se precaver. Erwin é convocado à "rua Hoffman" à
meia-noite, por um demônio. Não há como deixar passar despercebida a alusão
de Nabokov: os contos fantásticos do romântico alemão E.T.A. Hoffman
interligam imperceptivelmente o sonho e a realidade demoníaca. Brian Boyd
descreve "The Nursery Tale" como sendo "propositalmente hoffmanesco".
Mas desse mastro literário corre um fio de seda que o liga ao "Lolita"
alemão. Não ao final, mas já em sua primeira oração, o conto de Lichberg
indica o modelo em cuja tradição ele se enxerga: "Alguém atirou o nome de
E.T.A. Hoffman na conversa. Novelas musicais".
Em companhia agradável, a conversa passa a girar em torno das relações
entre arte e realidade, introduzindo uma narrativa interior. É essa a
introdução convencional à história de Lichberg -um artifício do qual o
próprio Nabokov, quando jovem, nem sempre se abstinha. A senhora da casa
diz ao jovem escritor presente: "Você acha possível que essas coisas, sobre
as quais eu raramente chego mesmo a ler, possam me manter acordada à noite?
Minha razão me diz que são apenas fantasias, e, no entanto..." "É porque
não são apenas fantasia, condessa!" O diplomata deu um sorriso
bem-humorado. "Mas você não está querendo dizer que Hoffman viveu esses
terrores!" "É exatamente isso o que quero dizer", respondeu o escritor,
"ele os viveu, sim. Não, é claro, com suas mãos e seus olhos. Mas, como era
escritor, ele viveu o que escreveu -ou, melhor dizendo, escreveu apenas
aquilo que já vivera espiritualmente...'".
É a deixa para a intervenção de outro ouvinte, um professor universitário
que, até esse momento, se mantivera em silêncio. Ele quer relatar algo que
pesa sobre sua mente há anos e que ele ainda não sabe se foi experiência ou
fantasia. Assim começa a narrativa real de uma história altamente
hoffmanesca, uma história cujo núcleo encerra justamente o tema que
germinou na ficção de Nabokov dos anos 20 em diante.
Eis a base da história. Na cidade do sul da Alemanha onde estuda, o
narrador entra em uma taverna pertencente a dois irmãos idosos e estranhos,
com barbas revoltas, ruivas com tons grisalhos. Ele se senta à mesa deles,
recebe vinho espanhol para tomar e vê um lenço de cabeça de seda preta em
uma cadeira próxima, do tipo que as garotas espanholas usam em dias de
festa. Ocorre a ele que algo fora do comum pode estar acontecendo no lugar,
mas ele não pensa mais no assunto. Certa noite, ao passar pela taverna, ele
ouve vozes jovens iradas, alteradas, uma briga violenta e um grito de pavor
saído da boca de uma mulher. Na manhã seguinte, porém, tudo no
estabelecimento dos dois irmãos parece tão normal que ele coloca sua
experiência em dúvida e tem vergonha de perguntar a eles sobre o que ouviu.
Pouco depois ele parte em viagem à Espanha, na qual conhecerá Lolita, e o
leitor descobrirá a solução do mistério.
Lichberg batizou seus contos de "grotescos". A descrição não cai bem em sua
"Lolita", que recebe tratamento mais condizente com um conto gótico ou
mesmo com as histórias de fantasmas de Hoffman. Nabokov não estava acima de
escrever romances fantasmagóricos ao estilo de Hoffman. Além da chamada
"dimensão espectral" que já foi detectada em sua obra, ele não tinha
receios em aderir a esse gênero resistente.
Quando tinha a mesma idade em que Lichberg inventou sua criança-mulher
espanhola, Nabokov-Sirin escreveu "La Veneziana", uma história que brinca
com tropos dessa forma. O título e o tópico desse trabalho -que não deixa
de ter atrativos- de sua fase inicial é uma pintura antiga que vem
acompanhada de uma história incomum. O quadro representa uma beldade que
possui uma semelhança espantosa com uma inglesa viva, mas que, na
realidade, é -ou deve ser- uma senhora veneziana de vários séculos atrás. A
semelhança é tão espantosa que o protagonista da história, que está
apaixonado pela inglesa, passa sessões secretas sentado diante do retrato
e, no final -como na história do pintor chinês-, desaparece dentro dela.
A "Lolita" de Lichberg não vai tão longe assim. No entanto também com essa
relação Nabokov poderia ter encontrado nela seu tema, como se fosse
espelhado. O viajante na Espanha topa com um desenho na pensão que parece
retratar sua amada. Mas a impressão é enganosa. ""Você pensa que é Lolita",
sorriu Severo, "mas é Lola, a avó da bisavó de Lolita, que foi estrangulada
por seu amante depois de uma briga, cem anos atrás."'
Eis, também, a solução do mistério: o passado. Com ele, chegamos ao cerne
da trama de Lichberg. Lolita não é apenas uma menina encantadora qualquer:
ela é amaldiçoada e sofre de compulsão repetitiva demoníaca. O narrador
fica sabendo desse passado assombrado quando finalmente decide partir, já
temendo o amor perigoso de Lolita. "Nos sentamos, e Severo contou a
história à sua moda amigável. Ele falou de Lolita, que, em seu tempo, tinha
sido uma das mulheres mais lindas da cidade, tão bela que os homens que a
amavam tinham que morrer. Pouco após o nascimento de sua filha, ela foi
assassinada por dois de seus amantes, a quem ela atormentara até levá-los à
loucura.
E, desde então, foi como se uma maldição tivesse sido imposta à família. As
mulheres sempre tinham apenas uma filha, e sempre morriam, dementes,
algumas semanas depois de dar à luz uma criança. Mas todas as meninas eram
lindas, tão lindas quanto Lolita! "Minha mulher morreu assim", ele
sussurrou em tom grave, "e minha filha também morrerá.' Eu mal conseguia
encontrar palavras para confortá-lo, pois o temor por minha pequena Lolita
era mais forte do que todos meus outros sentimentos. Quando entrei em meu
quarto, à noite, encontrei uma pequena flor vermelha, desconhecida para
mim, sobre o travesseiro de minha cama. O presente de despedida de Lolita,
pensei comigo mesmo, e a peguei em minha mão. Então vi que, na realidade,
era branca, e que só estava vermelha por estar tingida com o sangue de
Lolita.


__________________________________________________
Maldição, demonismo, compulsão repetitiva: são essas as correntes
subjacentes às duas lolitas
__________________________________________________


Era assim que ela amava." Nessa noite o narrador é testemunha de uma cena
fantasmagórica de assassinato. Ele pensa ver como Lolita -não: sua
antepassada, Lola, "ou terá realmente sido Lolita?"- leva dois amantes à
fúria e acaba sendo morta por eles. Nos assassinos, ele reconhece os gêmeos
Aloys e Anton Walzer. Na manhã seguinte, ele descobre que Lolita morreu
durante a noite. "Não posso descrever o que essas palavras me fizeram, e,
se eu pudesse, seria como uma profanação falar disso. Minha amada Lolita,
minha pequena, estava deitada em sua caminha estreita, com os olhos bem
abertos. Seus dentes estavam cerrados convulsivamente sobre seu lábio
inferior, e seus cabelos loiros e perfumados estavam revoltos." Com o
coração partido, ele deixa a Espanha no navio seguinte. "Mas a alma de
Lolita eu levei comigo." Anos mais tarde, ele retorna à cidade do sul da
Alemanha, indaga sobre os irmãos Walzer e fica sabendo que, na manhã após a
noite em que Lolita morreu, eles foram encontrados mortos em suas cadeiras
de reclinar ao lado do fogão, com sorrisos amigáveis nos rostos. Maldição,
demonismo, compulsão repetitiva: são essas as correntes subjacentes à outra
"Lolita", também. A criança-mulher de Nabokov também é uma "revenant", a
reencarnação de uma "gamine sans merci" anterior, fatal. Annabel, sua
primeira paixão da praia, incute o desejo pelas ninfetas para sempre em
Humbert. Ela lhe lança um feitiço do qual ele só poderá escapar ao deixar
que ela reencarne em Lolita. O livro de Nabokov não trata de pedofilia, mas
de demonismo. Humbert vive sob uma compulsão erótico-demoníaca. Já em seu
"The Nursery Tale" é o demônio quem entrega a primeira Lolita ao herói.
Isso não mudou em sua "chef d'oeuvre". De acordo com a queixa contundente
de Humbert, é o próprio demônio quem o incentiva e o faz de tolo e quem,
mais tarde, terá que lhe dar um descanso se quiser conservá-lo como seu
brinquedo por mais tempo. Mas não é apenas Humbert o objeto das maquinações
demoníacas. Por sua definição inconfundível, a ninfeta não é humana, mas
demoníaca. Lolita é "o demônio imortal disfarçado em criança menina". Será
preciso dizer que a Lolita de Lichberg também está presente aqui, nos
bastidores? A menina de Lichberg também é metade demônio, metade vítima de
uma maldição e, como seu amante, sujeita a uma compulsão vinda do passado.
Em Lichberg, há até mesmo um prazo temporal preciso para o feitiço entrar
em ação. Quando o narrador deixa Lolita, ela o morde na mão com toda a
força de sua boquinha. "Essas cicatrizes do amor", confessa a vítima a seus
ouvintes, "se conservaram indeléveis, mesmo 25 anos mais tarde."
Encontramos o mesmo intervalo de tempo quando Humbert vê Lolita pela
primeira vez -seu primeiro amor reencarnado, aquela de cujo encantamento
ele jamais escapou: "Os 25 anos que vivi desde então reduziram-se a um
ponto latejante e se desvaneceram."

Perda de identidade
Em seu caso, também, um quarto de século não foi capaz de extinguir a magia
do primeiro amor-maldição. E o padrão -é o padrão de todas as histórias de
amor e de morte- persiste. O que se repete compulsivamente ao longo dos
anos sempre termina por explodir em violência. A história de Lichberg nos
conduz à cena, que lembra um sonho, de um assassinato dramático e grotesco.
A cruel Lola chama seus amantes a competirem por ela. Ela amará aquele que
se revelar mais forte -eles crescem até seus ossos racharem; amará o mais
velho -o cabelo cai de suas cabeças; amará aquele que tem a barba mais
comprida e feia -longos pêlos ruivos se projetam dos rostos distorcidos dos
irmãos Walzer, que então, aos gritos de fúria e desespero bestial, se
atiram sobre Lola e a estrangulam. "Fale pela última vez -ou irás ao
inferno com sua beleza três vezes amaldiçoada." O final do livro de Nabokov
também é uma morte fantasmagórica, que lembra algo saído de um sonho.
Humbert e Clare Quilty, os dois amantes de Lolita, se misturam nessa cena,
tornando-se os gêmeos que foram desde o início em Lichberg. O sedutor de
Lolita, Quilty, é a sombra escura de Humbert, seu segundo eu. Em sua briga,
eles chegam a perder suas identidades gramaticais: "Rolei sobre ele.
Rolamos sobre mim. Rolaram sobre ele. Rolamos sobre nós". Quando Humbert
finalmente consegue matar seu alter ego -o que é difícil, já que as balas
no corpo de Quilty, em lugar de destruí-lo, parecem lhe infundir nova
energia-, ele sela sua própria sorte. Algumas semanas mais tarde, também
Humbert, o sátiro trágico, é um homem morto.

A arte tem a última palavra
No conto de Lichberg, não é o rival quem é morto, mas a mulher. Mas Nabokov
também brinca com essa variante. Não apenas o "leitmotiv" de citações de
"Carmen" atrai seu leitor até o fim por essa trilha falsa, sugerindo que o
amante traído pode acabar por disparar contra sua amada infiel. Mesmo em
seu adeus a Lolita, Humbert flerta com a idéia de sacar seu revólver e
fazer algo estúpido. Como sabemos, a grávida senhora Schiller, em quem
Lolita se transformou, é poupada desse fim.
Indiretamente, porém, a maldição ainda parece se irradiar da obra de
Lichberg. Lola é assassinada logo após a morte de sua filha. Lolita morre
nas semanas seguintes ao parto de sua filha natimorta.
A última palavra, é claro, não é da morte, mas da arte. Lolita e sua
história, repleta de sangue, tutano e lindas moscas verdes reluzentes,
fazem de Humbert um escritor. O romance termina com sua esperança da única
imortalidade que ele e sua musa poderão dividir: o refúgio da arte. O
amante do conto de Lichberg segue o mesmo caminho. Também ele é iniciado na
arte por Lolita. Quando conclui sua história, a condessa -que o ouviu de
olhos fechados- murmura: "Você é um poeta". Existem apenas três
possibilidades, pelo menos até que alguém nos mostre uma quarta.
A primeira é que estamos na presença de uma dessas coincidências fortuitas
que ocorrem repetidas vezes na história da arte e da ciência. Essa
possibilidade não pode ser excluída. Mas, pelas barbas do profeta, isso
seria um verdadeiro milagre.
A segunda possibilidade é que Nabokov tinha conhecimento do conto de
Lichberg e, metade inserindo e metade apagando seus rastros, se prestou
àquela arte da citação à qual Thomas Mann, ele próprio mestre nela, dava o
nome de "plágio de alto nível". Plágio? Um absurdo. Afinal, a literatura
sempre envolveu a repetição de motivos já familiares: em que ela consiste,
senão em literatura? Entretanto, deixando isso de lado, essa segunda
possibilidade é tão improvável quanto a primeira. Ela não combina com
Nabokov. Alusões a Poe, Proust ou Puchkin, a Shakespeare, Chateaubriand ou
Joyce, que pululam em sua obra, possuem uma valência que alusões a um
escritor menor e desconhecido jamais poderiam ter. Nabokov não tinha
necessidade de plagiar e tampouco teria enobrecido um Von Lichberg, citando
o nome de sua heroína.
Isso deixa a terceira possibilidade como o palpite mais plausível. De
alguma maneira misteriosa, ""A Gioconda Maldita", de Lichberg, caiu nas
mãos de Nabokov. Folheando o livro, ele poderia ter topado com a história
da ninfeta, e assim o tema teria começado a passear por sua mente. Ele
esqueceu a história ou pensou tê-la esquecido. Também desse fenômeno, a
criptomnésia, a história da arte oferece exemplos suficientes.
Décadas mais tarde, atraídos à superfície por novas iscas, nomes e partes
dos detalhes começaram a sair das profundezas de sua memória. O momento de
maior acerto ao escrever, explicou Nabokov em entrevista que concedeu à
televisão em 1966, lhe ocorria quando ele se percebia indagando: "Como isso
veio até mim? Como é que existia em minha cabeça antes mesmo de eu pensar
nisso?". Tal é a graça da inspiração. Como a bênção bíblica de duas faces,
ela pode vir do alto, mas também pode ascender dos calabouços da memória.
O patinho feio e o cisne soberbo -se essa imagem remete em demasia aos
contos de fada, ela também pode ser expressa mais tecnicamente. Heinz von
Lichberg, que não deixava de possuir talento, mas era abertamente imaturo,
se ocupou em fabricar sua "Lolita" com pano, madeira, papel e barbante.
Vladimir Nabokov usou materiais semelhantes -mas, com eles, criou um
papagaio que desapareceu no céu azul da literatura.

__________________________________________________
Michael Maar é pesquisador e ensaísta alemão. A versão integral do artigo
acima foi publicada no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.




----- Original Message -----
From: D. Barton Johnson
To: NABOKV-L@LISTSERV.UCSB.EDU
Sent: Monday, August 02, 2004 3:33 PM
Subject: Fw: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequ?ncia
extraordinariamente ...

----- Original Message -----
From: Jansy Berndt de Souza Mello
To: D. Barton Johnson
Sent: Monday, August 02, 2004 8:43 AM
Subject: Re: O amor, em Vladimir Nabokov, tem essa consequência
extraordinariamente ...

PS: I forgot to tell you that "suspension dots" in Portuguese are called
"reticências" ( "reticences" wouldn´t seem to be VN´s tactics ...nor the
dotting lines on the wings of the butterfly, nor VN´s play with "Dolores"
on a dotted line).
J.

---------- End Forwarded Message ----------



D. Barton Johnson
NABOKV-L
Attachment